«Ouvir notícias da Palestina todas as manhãs é uma tortura», por Amira Hass

Artigo publicado no Haaretz em 22 de Abril de 2019

Fatma Sleiman, uma professora da aldeia de Tuqu, no Sul da Cisjordânia, morreu na quinta-feira num acidente de viação. Testemunhas disseram que um camião israelita bateu no seu carro. Isto não foi noticiado em Israel e certamente nunca será investigado como um abalroamento suspeito. Mesmo a cobertura dos meios de comunicação palestinos foi fraca, e apenas no Facebook e sites de notícias locais se encontrou relatos dos acontecimentos que se seguiram à sua morte. Mais adiante voltarei a falar disto.

Ouvir as notícias palestinas todas as manhãs é uma tortura. Em primeiro lugar, o conteúdo esvazia a bolha ilusória da normalidade, o desejo de um pouco de silêncio, de esquecer que cada bolha está cercada por cercas de arame farpado. Esquecer os numerosos acampamentos do exército, as barragens de estrada em que os soldados te apontam directamente as suas armas, os colonatos prósperos, os postos avançados hostis e as estradas de várias vias que ligam Amona à Califórnia e reduzem as comunidades palestinas a um aglomerado arquitectónico de oficinas de reparação de automóveis, fábricas de costura e fumarentos quiosques de falafel, intercalados com vivendas, blocos de apartamentos densamente povoados, pilhas de carros desmantelados, moradias espalhafatosas que parecem ter saído do Texas ou de Doha, e alguns belos edifícios antigos ou edifícios modestos dos anos 50, cobertos de painéis publicitários e slogans desbotados sobre a libertação da Palestina.

Uma segunda razão pela qual as notícias são uma tortura é que os relatos são geralmente lacónicos, moldados em fórmulas permanentes — mudando apenas a data e o local. Não há aqui muita iniciativa jornalística que possamos utilizar, apenas as muitas pontas soltas em que não se consegue pegar todos os dias: o exército de ocupação prendeu 12 pessoas na Cisjordânia e em Jerusalém, colonos invadiram a Al Aqsa, quatro jovens foram feridos por fogo do exército num confronto por causa das terras da aldeia, o exército invadiu as aldeias X e Y, uma criança perdeu o olho na explosão de uma granada de gás lacrimogéneo, o presidente Mahmoud Abbas voou para o Cazaquistão, a ocupação expropriou 400 dunams de terras férteis para construir uma estrada de desvio para os colonos, os colonos espancaram moradores locais no seu pomar.

E assim continua: a passagem de Rafah foi aberta e 200 pessoas saíram de Gaza, outras 20 000 estão à espera da sua vez de partir. A ocupação demoliu uma tenda em Sussia e uma casa em Kubar, um rapaz de 15 anos foi morto por tiros de soldados em Al Bureij, em Gaza, e 38 ficaram feridos, um homem demoliu a sua própria casa em Jerusalém para não pagar as despesas do município da ocupação, o presidente Mahmoud Abbas disse que sem Gaza não há Estado e não haverá Estado apenas em Gaza, a ocupação anunciou a construção de mais 200 unidades habitacionais no colonato de Gilo, o tribunal israelita permitiu que as autoridades de ocupação destruíssem/expropriassem/prendessem, soldados executaram uma jovem, alegando que ela tinha realizado um ataque com faca. E assim por diante. Todos os dias, quase todos os noticiários. Todos os canais de notícias palestinos.

Estes relatos também são uma tortura por uma terceira razão: eles nem sequer chegam às pessoas que deveriam ouvi-los — isto é, os judeus israelitas. Por mais que não fosse, ao menos para os tranquilizar de que têm tudo controlado. Teoricamente, essa seria nossa tarefa, a tarefa dos jornalistas, preencher ecrãs e páginas com relatos do que o exército do povo judeu está a fazer, o tempo todo, sem parar.

Mas a comunicação social gosta do que é novo e incomum. «Um juiz militar, invulgarmente, libertou um detido administrativo»; «Pela primeira vez em 38 anos, um dunam de terras do Estado no Vale do Jordão foi devolvido à jurisdição de uma aldeia palestina»; «Duas hienas doentes do Jardim Zoológico de Gaza receberam, do coordenador das actividades do governo nos territórios, uma autorização de saída para tratamento médico.» Tudo o resto são notícias que se repetem, e por isso não são notícia. E então vem o Facebook e junta tormento à tortura com detalhes próprios. Para quem acha que pode escapar do árabe, Tamar Goldschmidt, de Jerusalém, aí está para traduzir, palavra por palavra, os relatos locais, incluindo a tradução do acontecimento de quinta-feira em Tuqu.

Nos últimos 10 dias, o exército fechou todas as saídas de Tuqu. Apenas uma estrada secundária perigosa leva à estrada principal, onde a modernização é uma prerrogativa exclusiva de Israel. Não há sinais de trânsito ou nem semáforos e «os colonos conduzem a velocidades loucas», diz o relato (embora eu me permita acrescentar que não são só eles). A professora Sleiman morreu, o funeral teve lugar na quinta-feira. Os moradores locais culpam pela sua morte a ocupação, a estrada perigosa e os israelitas. O funeral terminou, os jovens manifestaram-se. Talvez tenham atirado pedras; de que outra forma dirão eles aos suseranos israelitas que já estão fartos?

A polícia de fronteira e as tropas do exército prendem um jovem, algemam-no, tapam-lhe a cara com uma camiseta branca. Ele senta-se no chão, curvado e algemado. Um soldado com um capacete aponta-lhe a arma. Uma cena humilhante. Algemado pelas pernas, o jovem, estudante do ensino secundário, cambaleava para longe dos soldados. Que coragem! Um soldado dispara sobre ele. Que crueldade.

Um vídeo e fotos no Facebook mostram o palestino ferido, um paramédico israelita a tratar dele, outro soldado a apontar a arma a uma mulher que se aproxima. Ela empurra corajosamente o soldado armado e dirige-se ao palestino ferido. Que coragem! Um tiro para o ar. Um soldado aponta a pistola, os moradores avançam apesar disso. Que coragem! Eles transportam o palestino ferido para o carro que o levará para tratamento. Os aldeões desejam-lhe um rápido restabelecimento.


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