«A FPF entre os últimos no campeonato da dignidade», por Carlos Almeida

No próximo dia 9 de Junho, a selecção nacional de futebol defrontará a selecção de Israel numa partida de carácter particular organizada pela Federação Portuguesa de Futebol no quadro da preparação para a fase final do Campeonato da Europa de 2020.

Há sensivelmente sete anos, na tarde do dia 16 de Julho de 2014, do outro lado do Mar Mediterrâneo, jogou-se uma outra partida. Nas areias de uma praia na cidade de Gaza, um grupo de crianças palestinas, com idades entre os 9 e os 13 anos, brincavam com uma bola, mas o seu jogo nunca chegou ao fim, interrompido pelo bombardeamento criminoso do exército israelita. Quatro crianças foram mortas – Mohammad Ramiz Bakr (11), Ismail Mahmoud Bakr (9), Ahed Atef Bakr (10) e Zakariya Ahed Bakr (10) – e outras duas ficaram gravemente feridas, Hamad Bakr (13) e Motasem Bakr (11), todas da mesma família.

Por esse e outros actos, cometidos na ofensiva de Israel iniciada a 13 de Junho de 2014, o Tribunal Penal Internacional ordenou recentemente uma investigação, considerando haver fortes indícios da prática de crimes de guerra.

Por estes dias, também, completam-se exactamente cinquenta e quatro anos de ocupação, por Israel, da Margem Ocidental do rio Jordão, incluindo Jerusalém Oriental, e da faixa de Gaza, além do território sírio dos Montes Golã, em desafio aberto da legalidade internacional.

Mas talvez não fosse necessário recordar estes trágicos acontecimentos. Na memória de todos estará ainda muito presente a mais recente agressão de Israel contra o povo palestino. O balanço dramático do mês de Maio último soma mais de 280 mortos, entre os quais 71 crianças, e aumenta a cada dia que passa, sempre que uma das mais de 3 mil pessoas feridas sucumbe à gravidade dos ferimentos infligidos.

Na Faixa de Gaza, em particular, os bombardeamentos israelitas não pouparam escolas, serviços de saúde, infra-estruturas civis e escritórios de agências noticiosas, palestinas e internacionais. Várias famílias foram apagadas da existência. Em consequência, o Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas deliberou constituir uma comissão de inquérito para investigar suspeitas de crimes de guerra e de abusos cometidos por Israel contra a população palestina nos territórios ocupados em 1967, mas também dentro das fronteiras de Israel de 1949.

É por estas, entre muitas outras razões, que a partida do próximo dia 9 de Junho com a selecção do estado de Israel – sublinhe-se, de carácter particular, portanto da inteira responsabilidade da Federação Portuguesa de Futebol e em última análise do Governo – não é apenas um jogo de futebol. Mais ainda no actual contexto, quando todos os dias chegam notícias de prisões e violências sobre a população palestina, de atropelos contra jornalistas no exercício do seu ofício de informar, a realização deste jogo é um acto político de naturalização do abuso e da violência, uma mão cúmplice oferecida à legitimação do ocupante, do agressor, daquele que, de forma impune e reiterada, viola o direito internacional.

A Federação Portuguesa de Futebol sabe que a congénere que agora vai receber, a Associação de Futebol de Israel, integra clubes dos colonatos ilegais construídos no território palestino ocupado por Israel em 1967 que são responsáveis por graves violações de direitos humanos sobre a população palestina e o maior obstáculo à criação de um Estado da Palestina viável.

A Federação Portuguesa de Futebol conhece as denúncias entregues à FIFA sobre a situação dos atletas palestinos, nomeadamente aqueles que integram a selecção de futebol da Palestina, sistematicamente impedidos por Israel de treinar e participar em competições, tanto em casa como no estrangeiro.

A Federação Portuguesa de Futebol não ignora que a arbitrariedade do exército israelita impede o normal decurso das competições oficiais, reconhecidas pela FIFA, nos territórios palestinos ocupados em 1967. A Federação Portuguesa de Futebol sabe, como todo o mundo, que Israel prende e assassina atletas palestinos, destrói estádios e infra-estruturas desportivas, algumas construídas com contribuições europeias, incluindo Portugal.

De nada valem as campanhas contra o racismo, o discurso de ódio e a violência no desporto, se a Federação Portuguesa de Futebol continuar a normalizar quem, como Israel, faz da discriminação e da segregação lei e fundamento político da organização do estado, como o denunciam inúmeras organizações de direitos humanos, incluindo em Israel.

Em nome dos valores fundadores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, exige-se que o mesmo sobressalto ético que levou a generalidade da comunidade desportiva em todo o mundo, incluindo a FIFA, a suspender a África do Sul durante o regime do apartheid, conduza, hoje também, ao isolamento internacional do estado de Israel e das suas estruturas desportivas enquanto durar a política de ocupação, colonização e limpeza étnica da população palestina.

Com o seu gesto, a FPF coloca-se de fora deste imperativo, associando-se, e ao estado português, à continuação de uma política que sufoca os sonhos e as esperanças de milhões de crianças e jovens que vêem no desporto um lugar de sã convivência baseado nos valores da justiça, da equidade e do respeito pela pessoa humana.

No próximo campeonato da Europa de futebol, a selecção nacional portuguesa entrará em campo para defender o título conquistado em Paris, em 2016. A FPF, contudo, chegará a essa competição no último lugar no campeonato da dignidade, e da defesa dos valores da liberdade e da solidariedade.

Talvez que, como ficou patente muito recentemente em alguns importantes eventos internacionais, seja a consciência dos próprios jogadores e praticantes da modalidade a ditar as mudanças que se impõem. Por sua parte, a solidariedade continuará a cumprir o seu dever e a proclamar, frontalmente e sem ambiguidades: não em nosso nome.


Carlos Almeida é Historiador e Vice-Presidente do MPPM – Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente.


Este artigo de opinião foi publicado, em 9 de Junho de 2021, no Público. As hiperligações no texto são um trabalho editorial do Público.


Os artigos assinados publicados nesta secção, ainda que obrigatoriamente alinhados com os princípios e objectivos do MPPM, não exprimem necessariamente as posições oficiais do Movimento sobre as matérias abordadas, responsabilizando apenas os respectivos autores.

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