«Tem vergonha, América», por Gideon Levy

Artigo publicado no jornal israelita Haaretz em 2 de Setembro de 2018
 
Agora já está à vista de todos: a América declarou guerra aos palestinos. Com o seu genro Jared Kushner, um especialista em organizações humanitárias e refugiados palestinos, o grande valentão Donald Trump decidiu acabar com a ajuda à agência da ONU que ajuda os refugiados palestinos. A explicação oficial: o modelo de negócio e as práticas fiscais da UNRWA [United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East] fizeram dela uma «operação irremediavelmente defeituosa».
Trump e o seu genro, os guardiões do selo do bom governo, acharam que a agência não é administrada correctamente. A contribuição anual dos EUA de 360 milhões de dólares vai acabar. Mesmo em Israel, que se alegra com cada uma das calamidades palestinas e tem a certeza de que tudo é um jogo de soma zero, as acha-se que o maior amigo de todos os tempos do Estado foi um pouco exagerado.
A nova América trata pequenas ofensas e grandes crimes de igual maneira. As verbas para as organizações de ajuda dos EUA que operam nos territórios [palestinos ocupados], como a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional, foram cortadas em 200 milhões de dólares.
Washington decidiu atingir os palestinos na carteira. De todas as somas enormes que vão ajudar regimes corruptos, de todos os biliões gastos em guerras inúteis e matanças em massa, é a ajuda para o campo de refugiados de Jabalya que é mal administrada e tem de parar. Os palestinos, chantagistas filhos de chantagistas, já não a merecem por causa do modelo de negócio. Seria cómico se não fosse tão triste; o preço da piada será pago de Chatila a Rafah.
Na próxima década, os Estados Unidos deverão despejar 38 mil milhões de dólares em Israel, um dos países mais desenvolvidos do planeta, com um dos exércitos mais bem equipados do mundo — que obviamente segue o modelo de negócio certo. Nem um único dólar pode ser cortado. Ajuda humanitária a um país carente que não desperdiça um único cêntimo.
Israel merece essa ajuda espantosa; cumpre todas as resoluções aprovadas pelas instituições internacionais, um modelo de moralidade que obedece a todas as recomendações dos EUA para que se retire dos territórios e ponha fim à ocupação. Vale a pena à América pagar todos os seus caprichos e guerras. Isso aumenta muito o seu prestígio global.
Este ano, os EUA vão gastar 46 mil milhões de dólares no Afeganistão, numa guerra de que nunca se farta. Vão despejar 13 mil milhões de dólares no Iraque, muito depois de já ter terminado uma das guerras mais insensatas.
Guerras? A do Afeganistão custou aos Estados Unidos 753 mil milhões de dólares, a do Iraque 770 mil milhões, segundo o Pentágono. Segundo o Instituto Watson para Assuntos Internacionais e Públicos da Brown University, o custo real era de 1,7 biliões de dólares. Duas guerras escusadas que causaram a morte desnecessária de centenas de milhares de pessoas, mas o dinheiro que foi gasto nelas seguiu um modelo de negócio adequado. O mesmo para as guerras na Síria e no Iémen.
Apenas a agência da ONU de assistência aos palestinos é administrada de forma inadequada. O líder do mundo livre, o maior promotor da guerra desde a Segunda Guerra Mundial, corta farinha a Yarmouk e óleo de cozinha a Bureij, porque os palestinos sobrestimam o número de refugiados.
Por trás de tudo isto, claro, existe uma verdade muito mais ampla. A UNRWA poderia contratar Eliad Shraga, chefe do Movimento pelo Governo de Qualidade em Israel, e cumprir padrões de gestão escandinavos, mas nada faria diferença. Há muito que Israel declarou guerra à agência, os Estados Unidos seguiram-no, como de costume, tudo com o objetivo de retirar a questão dos refugiados da ordem do dia.
Qualquer pessoa que conheça as condições nos campos de refugiados sabe quanto os seus habitantes estão dependentes da agência da ONU. Pode haver algum desperdício, decerto que há parasitas, a reforma é absolutamente necessária, mas a UNRWA fornece assistência humanitária básica. Sem ela não há escolas, clínicas e comida nos campos. Os Estados Unidos têm uma dívida indirecta para com as pessoas que lá vivem; financiam e apoiam a ocupação israelita, e nunca levantaram um dedo para alcançar uma solução genuína para o seu sofrimento.
Mas a nova América também perdeu a vergonha; até já nem quer fingir que é o mediador honesto ou cuidar dos necessitados do mundo, como a sua posição a obriga a fazer. Vamos então dizer, tem vergonha, América.

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