«No meio da indiferença, Gaza mergulha na miséria – Uma “comunidade internacional” apática», por Chloé Sharrock

Artigo publicado em Orient XXI em 5 de Fevereiro de 2018
 
Submetidos a um bloqueio israelita com mais de dez anos, milhões de palestinos encerrados em Gaza vivem uma situação dramática que, no entanto, não suscita nenhuma indignação da «comunidade internacional». E os próximos meses podem ser ainda piores.
Na manhã de 22 de Janeiro de 2018 as portas das lojas da Faixa de Gaza permaneceram obstinadamente fechadas, e à tarde os punhos irados de centenas dos seus habitantes ergueram-se em sinal de derradeiro protesto contra a situação económica do território, já exausto. Esta greve seria seguida três dias depois por um novo dia de mobilização, na sequência da decisão dos Estados Unidos de congelar 65 milhões de dólares do orçamento anual atribuído à Agência de Socorro e Trabalhos das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA, United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East). A 29 de Janeiro o guião repete-se, e desta vez as ruas são tomadas pelo pessoal das agências da ONU presentes em Gaza.
Embora esta situação precária não seja nova, os sucessivos sobressaltos marcam um ponto de ruptura para o enclave palestino, que, confrontado com numerosos conflitos e uma década de cerco, corre o risco de sucumbir sob o peso de uma crise humanitária sem precedentes.
Outrora pedra angular da política palestina, de nacionalismo desafiador, a Faixa de Gaza já não passa de ponto nevrálgico das querelas que abalam a Palestina actual, cindida em dois entre o partido Fatah de Mahmoud Abbas — à frente da Autoridade Palestina (AP) — e o Hamas de Ismail Haniyeh, que controla Gaza desde que tomou o poder em 2007. À polarização constante das divisões vêm somar-se um bloqueio prolongado e conflitos sucessivos, conduzindo a um impasse que parece ter atingido o clímax: uma década após a subida do Hamas ao poder, a situação é alarmante tanto no plano económico como no social.
Apesar de várias tentativas de reconciliação — efectuadas sem grande convicção —, a divisão administrativa e política continua a ter fragorosas repercussões sobre a frágil economia do território gazense. Ao passo que os acordos do Cairo em 2011, de Doha em 2012 e de «Beach Camp» em 2014 tiveram muito pouco efeito na luta fratricida que agita os dois campos, a criação pelo Hamas de um Comité Administrativo em Março de 2017 empurrou o Fatah a endurecer definitivamente as suas relações com o seu rival, desferindo então um derradeiro golpe na magra esperança de unidade nacional.
A electricidade, objecto de discórdia
No coração destes constantes jogos de poder, alguns artigos vitais tornam-se então um meio de pressão, não deixando de favorecer o agravamento da situação humanitária já catastrófica. Assim, em Junho de 2017 a AP decidiu reduzir em 35% o pagamento da electricidade de Gaza habitualmente feito a Israel, que imediatamente amputou em 60 megawatt (MW) a corrente injectada na Faixa. O resultado não se faz esperar: os habitantes iriam enfrentar um défice de até 21 horas diárias de corte de corrente. Só após um novo acordo, assinado a 12 de Outubro de 2017 sob a égide do Egipto, é que a electricidade foi restabelecida. No entanto, para Mohamed Thabet, porta-voz da companhia de distribuição de electricidade de Gaza, a situação permanece fundamentalmente preocupante:
«A nossa electricidade provém de três fontes diferentes: 120 MW de Israel, 23 MW do Egipto e 50 MW da nossa central eléctrica. No Inverno, a procura eleva-se a 600 MW de potência, mas nós só recebemos um terço! E apesar dos 60 MW suplementares de Israel, só teremos 6 horas de electricidade por dia. Não chega, e são afectados numerosos sectores: devido a estas restrições, enfrentam graves problemas a educação, os sistemas de saúde, a ajuda humanitária.»
A falta de electricidade é o ponto de partida de uma infindável série de consequências socioeconómicas. A constante paralisação das estações de tratamento e de dessalinização de água, por falta de corrente, atira Gaza para um fosso onde se misturam problemas ambientais e sanitários. Com apenas 12 horas semanais de acesso à água e um lençol freático à beira de se esgotar, a população hoje em dia só tem acesso a 5% de água potável. Paralelamente, 180 milhões de litros de águas residuais são diariamente derramados no mar, ameaçando o instável ecossistema ligado ao território.
Também as estruturas de saúde estão num impasse crítico, uma vez que milhares de vidas dependem de equipamentos médicos que funcionam com electricidade. Existem soluções, as mais vulgarizadas das quais são os geradores ou as baterias UPS, mas são insuficientes e demasiado caras. O hospital pediátrico Al-Doura tentou instalar painéis solares no telhado (meio também empregado pela câmara municipal ou pelos comerciantes mais ricos), mas o investimento inicial é desproporcionado em relação aos resultados obtidos.
Quanto aos geradores, que facilmente adivinhamos devido ao rugido incessante vindo do pátio do hospital Al-Chifa, uma das maiores estruturas de saúde de Gaza, o seu funcionamento necessita de até 300 litros de combustível por hora, ou seja, um custo estimado de 4000 dólares/dia (3210 euros). E como funcionam até 20 horas por dia, quando são concebidos para uma média de apenas 8 horas, os aparelhos correm o risco de parar a qualquer momento — uma consequência que poderia custar a vida a centenas de doentes.
É com ar preocupado que o Dr. Ayman Al-Sahbani, chefe das urgências do hospital, fala da situação:
«É realmente delicado, alguns departamentos precisam de electricidade 24 horas por dia e 7 dias por semana, como o da diálise ou dos cuidados neonatais intensivos, onde mais de 150 bebés dependem de incubadoras para se manterem vivos. Também somos obrigados a adiar algumas operações para optimizar a utilização do combustível do gerador. Além disso, os empregados não estão a receber os salários e temos falta de muitos medicamentos e equipamentos.»
Dez anos de bloqueio
O bloqueio imposto por Israel e pelo Egipto acrescenta às restrições de corrente uma outra dificuldade de vulto: as reservas de medicamentos estão a esgotar-se e enfrentam um défice de 35%, ao mesmo tempo que os doentes mais graves têm dificuldade em obter uma autorização de saída do território que lhes permitiria ter acesso a cuidados adaptados. Paralelamente, é frequente o fornecimento de combustível ser vítima do embargo. O hospital Beit Hanoun conheceu essa situação em 29 de Janeiro passado, sendo obrigado a suspender alguns dos seus serviços e a transferir de urgência centenas de doentes para um outro estabelecimento.
Desde 2007, na sequência da tomada do poder pelo Hamas, a circulação tanto de bens como de pessoas foi totalmente limitada pela instauração de um bloqueio por Israel e pelo Egipto, que continua a obstaculizar qualquer possibilidade de reconstrução económica. Enfraquecido pelos conflitos e pelas tensões, o território sente este bloqueio externo de longa duração como uma derradeira sanção que se abate sobre o conjunto da população. Entravando qualquer fluxo humano ou material e qualquer possibilidade de saída dos habitantes, muitas vezes justificou a qualificação da Faixa de Gaza como «prisão a céu aberto».
Os comerciantes e negociantes estão impedidos de exportar os seus produtos, embora tal representasse uma das principais fontes de rendimento para uma grande parte da população. E enquanto o sector privado foi posto de joelhos pelas restrições drásticas à exportação, paralelamente a importação de numerosos materiais de construção esteve proibida por Israel, sob pretexto de poderem ser utilizados para fins militares pelo Hamas, nomeadamente para o fabrico de armas. Assim, Gaza sofreu desde 2008, ano seguinte ao início do bloqueio, uma baixa de 75% do número de camiões que importam mercadorias para o território. E ainda hoje cerca de 5000 artigos são retidos na fronteira, entre os quais madeira, cabos eléctricos, elevadores ou equipamentos médicos.
Inabitável em 2020?
No entanto, a reconstrução é uma necessidade absoluta, dadas as guerras consecutivas que devastaram os 360 km2 do território. Actualmente mais de 30 000 pessoas continuam à espera de serem realojadas na sequência do conflito de 2014, durante o qual 17 800 habitações foram totalmente destruídas e 170 000 deterioradas.
Além disso, é certo que os conflitos mobilizaram a ajuda da comunidade internacional, mas a atenção aos esforços de reconstrução que é intrínseca aos conflitos regulares inevitavelmente desviou a atenção de outros projectos de fundo, no entanto indispensáveis ao desenvolvimento económico de Gaza a longo prazo. Paralelamente, mantiveram afastados investimentos que teriam permitido uma reabilitação estrutural da sociedade, alicerçada em bases sólidas e decididamente virada para o futuro.
Face a este impasse multiforme e prolongado, é difícil não pensar no relatório publicado pelas Nações Unidas em 2012, Gaza in 2020: a Liveable Place?, que já alertava para o risco de Gaza se tornar inabitável até 2020 se não fosse tomada nenhuma medida concreta. Um outro relatório publicado em Julho de 2017 pelo United Nations Country Team in the occupied Palestinian territory (UNSCO), Gaza Ten Years Later, vem confirmar a urgência da situação, em que Gaza está empenhada numa corrida contra-relógio que parece não conduzir a nenhum desenlace.
A UNRWA, última muralha antes da catástrofe humanitária
Dependendo a população inteiramente das ajudas externas, nomeadamente com mais de metade dos habitantes a viverem abaixo do limiar de pobreza e em insegurança alimentar, a decisão dos Estados Unidos, em Janeiro, de reduzir em 65 milhões de dólares a sua ajuda à United Nations Relief and Works Agency (UNRWA) — a Agência das Nações Unidas para os refugiados palestinos — assemelha-se a um golpe de misericórdia, num momento em que a situação está a atingir um ponto de não retorno. Basta olhar para os números das infra-estruturas existentes para perceber a extensão da ajuda indispensável da UNRWA num território tão enfraquecido como é Gaza: 267 escolas, 21 centros de saúde, 16 centros de serviços sociais e quase 12 500 funcionários. Oito campos de refugiados, dos mais densamente povoados do mundo, também fazem da sociedade gazense uma população particularmente vulnerável.
Para além das consequências estritamente financeiras, o congelamento da ajuda ameaça exacerbar a ruptura entre os diferentes actores do processo de paz do conflito israelo-palestino, nomeadamente a AP e os Estados Unidos, cujas relações se deterioraram significativamente na sequência da decisão de Donald Trump de reconhecer Jerusalém como capital de Israel.
António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, sublinhou aliás muito justamente a dualidade indissociável do papel da UNRWA numa conferência de imprensa em 16 de Janeiro de 2018 em Nova Iorque:
«Estes serviços [da UNRWA] são de extrema importância, não somente para o bem-estar destas populações […], mas também, na minha opinião, e esta opinião é partilhada pela maioria dos observadores internacionais, incluindo alguns israelitas, é um importante factor de estabilidade.»
Porém, esta estabilidade afigura-se actualmente ameaçada, num momento de desacordos recentes e em que as acusações chovem de todos os lados. Para o governo israelita, a UNRWA fomenta o ódio contra os israelitas e apoia o Hamas, que considera um grupo terrorista. Para os palestinos, o congelamento da ajuda é mais uma concessão que os Estados Unidos fazem a Israel e uma humilhação suplementar que justifica a sua recusa de continuar a ver a América de Trump como mediador de paz legítimo. A isso se vêm somar as incansáveis querelas que opõem os dois partidos palestinos, os quais procuram um terreno de acordo, até agora sem resultado.
No entanto, uma dinâmica unitária e uma resolução do conflito intrapalestino apresentam-se como condições sine qua non de um apaziguamento das tensões externas, antes de pretender lançar as fundações de uma paz duradoura na região. Só voltando a colocar Gaza no centro das questões políticas internacionais é que será possível abrir um diálogo concreto com os outros actores do conflito, e assim entrever uma saída da crise para o território.
 

Os artigos assinados publicados nesta secção, ainda que, obrigatoriamente, alinhados com os princípios e objectivos do MPPM, não exprimem necessariamente as posições oficiais do Movimento sobre as matérias abordadas, responsabilizando apenas os respectivos autores.
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