«Justiça para a Palestina», por Carlos Almeida

Texto da intervenção feita no dia 2 de Novembro de 2017, na Fundação José Saramago, na apresentação pública do Manifesto «Justiça para a Palestina»

No dia 2 de Novembro de 1917, uma declaração assinada pelo Secretário dos Negócios Estrangeiros, Arthur James Balfour, em nome do Governo Britânico, foi entregue ao 2º Barão de Rothschild, Lionel Walter Rothschild de seu nome, para ser encaminhada ao movimento sionista mundial, através da Federação Sionista Britânica.

Escrevia-se nessa carta que o Governo de Sua Majestade declarava o seu apoio às pretensões do movimento sionista em relação à Palestina e comprometia-se a empregar “todos os seus esforços” na realização do objectivo de constituir na Palestina um “lar nacional para o povo judeu”. Na mesma carta, o governo inglês sublinhava a necessidade desse projecto garantir o que designava como “direitos civis e religiosos das colectividades não-judaicas existentes na Palestina”. Cerca de uma semana depois, a 9 de Novembro, esta declaração seria tornada pública na imprensa britânica.

Cem anos decorridos, os primeiros-ministros de Inglaterra e de Israel, mais as respectivas comitivas, reuniram-se num jantar festivo promovido com o propósito de celebrar o valor histórico daquela declaração. Há alguns meses, em resposta a um movimento de opinião pública que reclamava do Reino Unido um pedido de desculpas pela declaração, o governo britânico tornou pública uma nota onde expressava o orgulho pelo seu papel “na criação do estado de Israel”, lamentando que não tivessem sido acautelados “os direitos políticos” das “comunidades não judaicas na Palestina”.

Vale a pena olhar para estas duas declarações e compará-las, medindo o peso de cada palavra, perscrutando os silêncios e as ambiguidades, sem deixar de escutar as vozes sofridas e profundas que nos chegam destes cem anos de guerra, injustiça, iniquidade, mas também de resistência e de esperança.

A declaração de Balfour, como bem sublinhou Edward Said, é o melhor exemplo que a história nos legou do que pode definir-se como a “moral epistemológica do imperialismo”. Nela, uma potência europeia dispõe de um território longínquo, não-europeu, sobre a qual não detém qualquer direito e que nem sequer administra, para o atribuir a um grupo também ele estrangeiro, exterior a esse território, para que nele realize um projecto nacional, ignorando, além dos anseios e aspirações da população autóctone desse território assim transaccionado, sequer, a sua própria existência física. O “quero, posso e mando” na sua mais ostensiva e arrogante expressão, ensaiado um ano antes, no célebre acordo franco-britânico de partilha do Mediterrâneo Oriental então integrado no império Otomano, conhecido por Sykes-Picot, os dois principais negociadores, e que seria denunciado publicamente pela Rússia, poucos dias depois e na sequência da revolução de Outubro.

Atente-se em dois detalhes do articulado da Declaração de Balfour: se em relação ao movimento sionista se reconhecem as suas pretensões ao estabelecimento na Palestina de um “lar nacional” – o que naturalmente remete esse projecto para a esfera dos direitos políticos e nacionais – no caso da população autóctone daquele território expressava-se tão só preocupação com os seus “direitos civis e religiosos”. Notar-se-á, por outro lado, que a sociedade constituída e enraizada no território objecto da doação é identificada em negativo, as “colectividades não-judaicas da Palestina”, os que não são, mas sobretudo os que não têm uma identidade própria, que se amontoam num espaço determinado sem constituir uma comunidade de sentido, identificada com a terra que habita e onde se enraíza. Percebe-se como subjacente a esta lógica há um discurso xenófobo, estigmatizante e discriminador que recusa identidade ao outro, que o reduz a uma não existência.

Cem anos depois, a declaração do Governo britânico a propósito do centenário da carta assinada por Balfour é produzida a partir destes mesmos pressupostos que legitimaram o projecto sionista. Hoje, como ontem, o povo palestino – a existência de uma sociedade plural na sua imensa diversidade cultural e religiosa, mas profundamente enraizada numa terra – continua a ser reduzido à condição de negativo, “as comunidades não-judaicas na Palestina”. Há, é certo, um piedoso lamento por a declaração proferida em 1917 não ter reconhecido o direito à autodeterminação daquelas “comunidades”, mas de todo inconsequente, já que o que se propõe para reparar o erro é, tão só, “segurança e justiça para israelitas e palestinos” como se afinal estivessem ambos, e na mesma exacta medida, delas carentes.

A história destes cem anos é bem conhecida. As suas cicatrizes estão bem visíveis na terra. Centenas de povoações, cidades inteiras ou pequenas aldeias, apagadas do mapa, ou reduzidas a ruínas abandonadas, esperando que o tempo as engula. A colonização que a Grã-Bretanha se comprometeu, em 1917, a promover e apoiar prossegue hoje ainda, arrancando árvores de fruto e oliveiras, destruindo campos de cultivo e pastagens, arrasando casas, escolas, lugares de culto, centros de actividade económica. Um muro ignominioso serpenteia por montes e vales, reduzindo o quotidiano a uma distopia claustrofóbica, opressiva e segregadora. A paisagem é dilacerada por estradas que separam ao invés de juntar, que tornam longínquo o que é próximo. Sob a superfície do solo, inacessível ao olhar humano, uma rede complexa de infra-estruturas suga diariamente a água que por séculos alimentou uma agricultura rica e diversificada a benefício do avanço colonizador. Uma malha intrincada e caprichosa de postos de controle torna virtualmente impossível a circulação e rompe a contiguidade geográfica de todo o território. Num extremo desse lugar que chamamos Palestina, uma estreita faixa de terra com escassos 6 a 12 km de largura e 41 km de comprimento, jaz separada do mundo, abandonada, entregue a si própria, vigiada por uma parafernália militar como uma gigantesca prisão.

Esta Palestina começou a ser construída há cem anos, pela regulamentação legal discriminatória do Mandato Britânico, pelas forças armadas inglesas, com destaque para os tristemente famosos Esquadrões Nocturnos Especiais formados pelo comandante britânico Orde Wingate, pelas milícias sionistas, a Haganah, depois a Irgun e o Stern, finalmente pelo exército do Estado de Israel, proclamado em 1948. Mas o empurrão decisivo ocorreria trinta anos depois da declaração de Balfour, a partir de Novembro-Dezembro de 1947, quando o estado maior sionista pôs em marcha um plano construído e meticulosamente organizado de destruição da existência física daquelas comunidades “não-judaicas” de que fala ainda hoje o Governo inglês. Seria completado vinte anos depois, em Junho de 1967, com a ocupação total da Palestina, do mar Mediterrâneo ao rio Jordão. E prossegue hoje ainda por entre o silêncio cúmplice da generalidade da comunicação social.

Tantas guerras depois, tantas feridas abertas na paisagem, a Palestina é hoje um corpo doente e desfigurado, aqui e ali irremediavelmente destruído. E no entanto, nesta longa e trágica história, cem anos depois de Balfour, setenta anos depois da Nakba, 50 anos após a Naksa, uma realidade permanece, profundamente dorida, atormentada, mas sempre presente e determinada: a resistência, a obstinada, duradoura e inquebrantável resistência dos homens e mulheres que ao longo de gerações e gerações, nos descaminhos do exílio ou sob a mordaça da ocupação, teimam em sonhar para a Palestina, a sua Palestina, um futuro de esperança e dignidade.
 
Carregando o peso destes cem anos, eles aí estão, como “vinte impossibilidades” como escreveu Tawfiq Zayyad, abraçados às oliveiras que defendem com o próprio corpo, cultivando os aromas e sabores da terra que pisam, preservando a memória das festas que celebrarão, olhando nos olhos a violência do opressor e clamando ao mundo, sem cessar, a pergunta lancinante que Mahmoud Darwich gravou um dia: “Senhoras e senhores de bom coração, a terra dos homens é, como vós afirmais, de todos os homens?”

Estranho paradoxo o que se encerra neste drama secular: os não existentes, aqueles que só pela negatividade eram nomeados, sem cultura própria, sem identidade definida, e a quem o mundo foi incapaz, tantas vezes, de reconhecer a plenitude de direitos que definem a cidadania, são esses afinal o que de mais vivo e perene persiste naquela terra. É do povo palestino que falamos, árabe de cultura, muçulmano, cristão ou judeu pelo credo, que as correntes múltiplas do tempo moldaram com contributos de tantas origens, e cuja identidade se funda na relação indissolúvel com a terra. Um povo cuja existência foi sistematicamente negada mas que nunca se rendeu. Um povo cujo destino foi jogado na roleta dos interesses, disputado na mesa das cobiças e invejas imperiais, e que a todos desafiou com a nobreza do seu exemplo resistente. Um povo do mundo, e aberto ao mundo, que no exílio para onde a história o empurrou foi capaz de inventar novas solidariedades e aprender novas linguagens para nomear o amor à terra que é a razão da sua existência.

O século trágico que simbolicamente assinalamos questiona frontalmente a responsabilidade da comunidade internacional. De pouco teria valido a declaração do governo inglês assinado por Arthur Balfour se anos depois o seu conteúdo não tivesse sido vertido no Mandato atribuído à Grã Bretanha pela Sociedade das Nações para a administração da Palestina, conferindo dessa forma legitimidade jurídica internacional ao apoio britânico ao movimento sionista. A questão nacional palestina é por isso, desde a sua raiz, um problema de direito internacional, que pesa na consciência do mundo. No dia 29 de Novembro de 1947, a Assembleia Geral da ONU aprovou a resolução nº 181 que previa a partilha do território administrado pelo Mandato Britânico em dois estados, um judeu, outro árabe. Em 1977, trinta anos depois, dez anos após a total ocupação da Palestina pelo estado de Israel, as Nações Unidas instituíam aquele mesmo dia 29 de Novembro como Dia internacional de Solidariedade com o Povo Palestino, reconhecendo tacitamente a sua própria incapacidade para fazer cumprir aquela resolução.

Em nome do povo palestino, da responsabilidade pelo seu drama histórico que impende sobre a comunidade internacional, e de uma epistemologia moral da solidariedade que a realidade do mundo de hoje tão urgente e necessária faz, uma centena de personalidades dos mais variados sectores da vida cívica nacional responderam à chamada do (MPPM) Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente, subscrevendo um manifesto que honra o património solidário do povo português que a Constituição da República Portuguesa reconhece e consagra. Esse texto, que é apresentado em sessão pública na Fundação José Saramago neste dia 2 de Novembro, responsabiliza os poderes públicos para que, em todos os fóruns internacionais, prossigam uma política consentânea com os preceitos constitucionais de defesa firme e intransigente dos direitos inalienáveis do povo palestino.

Cem anos depois de o Governo Britânico ter determinado os destinos da Palestina, ignorando a vontade do seu povo, 70 anos depois da campanha de limpeza étnica do seu território que a cultura palestina reconhece como Nakba, 50 anos depois da ocupação total da Palestina, exigimos

Justiça para a Palestina!

Carlos Almeida é Historiador e Vice-Presidente da Direcção Nacional do MPPM

 

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