«Em direcção ao Sol: Lembrando Ismail Shammout», por Vasco Pinto Leite

Foi em Julho de 1975, no Festival Internacional de Cinema de Moscovo, entre dois mil convidados de delegações de todo o mundo, alojadas numa ala completa de um enorme hotel, o Roccia, que me encontrei frente a frente, pela primeira vez, com representantes da Organização da Libertação da Palestina (OLP). E com os seus filmes. E com o seu convívio, entre as inúmeras personalidades sonantes que eram mesmo de todos os quadrantes do mundo: Gina Lollobrigida, Beata Tyszkiewicz, Jacques Tati, Vittorio Gassman, Hortensia Allende, a viúva do Presidente eleito do Chile, Salvador Allende, morto em 1973 no golpe militar de General Augusto Pinochet, etc., etc., etc.

Em Portugal anterior à democracia e, dum modo geral, no Ocidente, a imagem dos palestinos no nosso subconsciente vinha intoxicada de uma obscuridade assaz carregada de principal responsável pelos horrores do conflito israelo-árabe, sombra resultante de uma sistemática campanha nos media que pendia quase sempre a favor de Israel.

Foi, então, através da cultura, que passei a conhecer melhor o drama do povo palestino e o conflito.

O pintor Ismail Shammout aproximou-se muito da delegação portuguesa que me competiu então encabeçar no Festival, principalmente porque ele queria saber como evoluía o 25 de Abril. Mas havia também a actriz Guida Maria, que integrava a nossa delegação (com o etnomusicólogo Michel Giacometti) e que pura e simplesmente o fascinava.

Conversámos e convivemos bastante. Ismail ofereceu-me uma selecção de reproduções da sua obra, que levava consigo. Em vez dum perigoso terrorista com dentes de vampiro deparámo-nos com um artista de enorme sensibilidade, que pintava um povo ávido de uma vida pacífica e feliz, que retratava com doçura a sua terra ancestral e a sua gente, os usos, os costumes e as tradições, num pulsar figurativo cheio de cor e de esperança; mas exprimia igualmente a tragédia da história moderna da Palestina, desde a nakba (desastre) de 1948 até à determinação sem tréguas pelos direitos inalienáveis duma população arrancada às suas raízes ou exilada, diariamente perseguida e humilhada na própria pátria. Ficámos bons amigos, passámos a trocar correspondência e voltámos a encontrar-nos posteriormente.

Ismaïl Shammout foi um dos mais importantes pintores árabes contemporâneos e lamentavelmente já faleceu, em 2006. Comemora-se agora o 15º aniversário da morte.

Com a proclamação unilateral da independência do Estado de Israel, em 1948, viu-se forçado a viver num campo de refugiados na Faixa de Gaza, instalando-se mais tarde em Beirute, no Líbano, em 1956. Depois de aderir à Organização de Libertação da Palestina (OLP) em 1965, sendo nomeado director das Artes e da Cultura Nacional, foi eleito em 1971 primeiro secretário-geral da União dos Artistas Árabes.  Em 1983 teve de mudar-se de novo com a família, para o Kuwait, por causa do ataque israelita contra o Líbano, vindo a fixar-se definitivamente em Amã, na Jordânia.

Em 25 de Novembro de 1975 confraternizámos de novo em Leipzig, na ex-RDA (República Democrática Alemã), a convite de Ronald Trisch, director do Festival Internacional de Documentários Filmes do Mundo para a Paz no Mundo. À noite, depois do cinema, uns poucos faziam tertúlias. Aí reencontrei o meu querido amigo Ismail. Cristina Micelli acompanhava-o e encantava-nos com a sua voz lindíssima que fazia tanto lembrar a Joan Baez. Nesse dia chegavam de Lisboa notícias preocupantes de que os ânimos se tinham radicalizado, à beira de uma guerra civil, no decurso da Revolução portuguesa. Ismail e Cristina viveram essa tensão e no dia seguinte ela surpreendeu-nos com a sua viola numa canção nova (Canzone per Vasco). Guardei a letra mas só gravei a música dentro de mim.

Em Novembro de 1979 o líder palestino da OLP, Yasser Arafat, veio a Lisboa para a Conferência Mundial de Solidariedade com o Povo Árabe e a Sua Causa Central: a Questão Palestiniana, organizada pelo Conselho Mundial da Paz e em que participaram 750 delegados de 100 países, designadamente delegados dos partidos portugueses PS, PSD e PCP. Arafat teve uma audiência de duas horas com o Presidente da República, General Ramalho Eanes. A Declaração de Lisboa condenou os Acordos de Camp David – acordos de Paz sem a participação da Palestina, entre Israel e o Egipto e sob a égide do Presidente dos EUA – e exigiu a retirada imediata de Israel dos territórios árabes, incluindo da cidade de Jerusalém.

Participei nessa Conferência em que delegação palestina incluía também Ismail Shammout. Recebi-o em minha casa, em família. Foi a última vez que nos encontrámos pessoalmente.

No final de 1988 a OLP proclama, em Argel, um Estado palestino com a capital em Jerusalém e, na Assembleia Geral da ONU em Genebra, Yasser Arafat, reconhece a existência de Israel, declara aceitar todas as Resoluções da ONU e denuncia o terrorismo sob todas as suas formas. Ou seja, Arafat renega aqui a luta armada, a violência e o terrorismo e inicia as conversações que conduziram aos Acordos de Paz de Oslo.

Deste modo, em 1993 israelitas e palestinos rubricam, em Oslo, uma Declaração de Princípios, passando ao reconhecimento mútuo de Israel e da OLP e à assinatura, em Washington, por Rabin e Arafat, da Declaração de Princípios de Oslo. Em 1994 o Prémio Nobel da Paz é atribuído a Yasser Arafat, Shimon Peres e Itzahk Rabin.

Em 28 de Setembro de 1995 é assinado o Acordo Interino de Oslo, que prevê a retirada israelita de várias cidades palestinas e a transferência de poderes para Arafat. Só que… em 4 de Novembro Yitzhak Rabin é assassinado por um extremista judeu e o sangue, a destruição e as lágrimas voltam a imperar nas relações entre os povos de Israel e da Palestina.

Não obstante…

Há uma frase atribuída ao poeta já falecido Mahmud Darwish que diz que os palestinos padecem de uma doença incurável: a esperança. E foi assim que Ismail Shammout teve ainda em vida (1997) um importante gesto simbólico – qual mensagem de dimensão metafórica: deslocou-se a Lydda, sua cidade natal, hoje Lod, em território israelita, para reencontrar a casa onde viveu, agora ocupada por uma família judaica. Ele acreditou sempre que a penosa caminhada do seu povo, com o apoio em Israel da oposição interna – embora sistematicamente reprimida – de tantos homens e mulheres de boa vontade do povo judeu, acabaria por converter, finalmente, os monstruosos desígnios de uma guerra numa solução de Paz e Fraternidade, em direcção ao Sol.

Donald Trump e tudo o que representa tentou dar um golpe de misericórdia na acossada resistência palestina. Os danos e os horrores consequentes eram previsíveis Na Faixa de Gaza que vinha de há muito transformada numa prisão a céu aberto, desesperam dois milhões de pessoas onde o grupo extremista Hamas serve a “legítima defesa” de Netanyahu. Que Joe Biden também perfilhou.

Assim, paradoxalmente, neste mundo global e em aflitiva crise pandémica da verdade e dos valores solidários, a ética de poluição que envolve o planeta será que nos vai deixar continuar a ver o Sol? Há que confiar na legítima certeza de Paz e Fraternidade que Ismail Shammout nos profetizou.


Vasco Pinto Leite é engenheiro civil de formação, mas tem uma extensa actividade cultural complementar sobretudo na realização e divulgação de filmes.
Após o 25 de Abril de 1974 foi nomeado Director-Geral da Cultura Popular e Espectáculos e Presidente do C.A. do Instituto Português de Cinema e do Fundo de Teatro. Foi Director do Gabinete de Programação Cultural e delegado da SEC na comissão que elaborou o projecto de Acordo Cultural com os novos países de língua oficial portuguesa.
Realizou para a RTP as séries
Memória Audiovisual, A Casa Sagrada de Malangatana e Encontros de África e é autor dos livros O Sonho Desfeito – Quanto Vale a Vida de Um Homem?, sobre a “ala liberal” dos tempos de Marcello Caetano, e O Corpo de Delito – A Ideia do Futuro e a Questão Cultural Portuguesa.
É membro-fundador do
MPPM - Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente.


Os artigos assinados publicados nesta secção, ainda que obrigatoriamente alinhados com os princípios e objectivos do MPPM, não exprimem necessariamente as posições oficiais do Movimento sobre as matérias abordadas, responsabilizando apenas os respectivos autores.

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