«Como separar os símbolos judaicos de Israel se Israel só tem símbolos judaicos?», por Bárbara Reis

Artigo publicado no Público em 10 de Maio de 2019

O primeiro-ministro Netanyahu diz que “Israel é o Estado-nação dos judeus — e apenas deles”. E a lei diz que a estrela de David é um “símbolo nacional”. Por isso é natural que os cartoons políticos os usem.

Há dias, Esther Mucznik, estudiosa de temas judaicos, perguntou: “Num cartoon de crítica política com a caricatura de Theresa May, Emmanuel Macron ou Marcelo Rebelo de Sousa, seriam utilizados os símbolos cristãos?”

Provavelmente não. Quando os cartoonistas vestem May de bandeira britânica — que é quase sempre —, na prática põem-na a carregar três cruzes cristãs (de São Jorge, Santo André e São Patrício, padroeiros do Reino Unido), mas não é por isso que pensamos em Jesus Cristo.

Vemos May com um avental-Union Jack, uma touca-Union Jack, um pin-Union Jack, um cobertor-Union Jack e não pensamos na simbologia cristã, embora ela lá esteja, como não pensamos em sexo quando a vemos na cama com Jeremy Corbyn, ou na morte quando tem a cabeça na guilhotina. Como os cartoons não são arte para contemplar numa galeria, mas uma forma de crítica rápida, a bandeira está lá para percebermos sem equívocos que se trata de Theresa May e não de outra senhora qualquer.

É por isso que Macron também é quase sempre desenhado vestido com as cores da bandeira francesa ou a transportar alguma coisa pintada com azul, branco e vermelho. E sim, o Presidente Marcelo já foi caricaturado num cartoon de António Jorge Gonçalves com as mãos unidas em gesto de oração e um terço pendurado nos punhos. Dirão que o cartoon, apesar de pouco lisonjeiro para Marcelo, é benigno. É verdade. Mas o crucifixo está no desenho porque ser católico faz parte da identidade do Presidente português, como também está lá um cravo vermelho, flor que o anterior Presidente do mesmo partido, Cavaco Silva, nunca usou, mas que o actual leva sempre na mão para as comemorações do 25 de Abril.

Mucznik diz que o cartoon de António retirado há dias pelo New York Times com um pedido de desculpa “é ofensivo e anti-semita” porque usa “símbolos judaicos como a estrela de David e a kipá num cartoon que se pretende exclusivamente político”.

Mas os símbolos fazem parte da nossa identidade e a nossa identidade é uma questão política, não nos livramos disso.

O que dizer do cartoon de Aung San Suu Kyi desenhada por André Carrilho com uma delicada flor no cabelo e as palmas das mãos fechadas no gesto da tradição budista — mãos que esmagam os rohingya? Concluímos que os budistas da Birmânia são assassinos? O que dizer dos budistas portugueses? Têm os budistas de todo o mundo “uma responsabilidade global” na política do Estado da Birmânia, como Esther Mucznik diz que o cartoon de António sugere em relação aos judeus? Porque é que Carrilho não usou a bandeira da Birmânia? Talvez porque ninguém a conhece — nos últimos 70 anos, o país teve três e a última é de 2010.

Isto não tem nada a ver — dirão — porque a bandeira de Israel usa um símbolo religioso e estas não. Justamente. É impossível separar Israel dos seus símbolos religiosos, porque os símbolos nacionais de Israel são símbolos religiosos. Como é que se separa o inseparável?

Michael Brenner, judeu alemão da nova geração de historiadores do sionismo — tem 55 anos — escreve em In Search of Israel – The History of an Idea (Princeton University Press, 2018): “O nome do Estado alude à origem bíblica mítica, a referência vaga ao nome divino na Declaração de Independência deu espaço a interpretações messiânicas, a constante referência ao seu nascimento miraculoso colocou o Estado fora de qualquer interpretação secular da História, a ausência de uma Constituição permitiu a neutralização futura dos valores dos fundadores, e a política de apaziguamento do status quo deu aos ortodoxos um poder considerável sobre o dia-a-dia do novo Estado.” E continua, referindo-se à fundação de Israel: “Os símbolos religiosos eram muitíssimo considerados. Até a bandeira nacional com as suas riscas azuis e brancas foi desenhada para fazer lembrar o talit, o lenço da oração. Tal como [Theodor] Herzl [“pai” do sionismo moderno que falava do futuro país como a Terra das Sete Horas, quando não se imaginava se seria na Palestina, Argentina ou Angola] 50 anos antes, [David] Ben-Gurion [primeiro chefe de governo de Israel] também achou importante que um conceito secular recebesse uma bênção religiosa.”

Como separar os símbolos religiosos dos cartoons políticos se os políticos israelitas todos os dias os juntem? Em Março, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu disse que “Israel não é um país de todos os seus cidadãos. [...] Israel é o Estado-nação dos judeus — e apenas deles”.

É a própria lei (Lei básica: Israel como o Estado-Nação para o povo judaico, aprovada no Verão no Knesset) que define a bandeira e a menorah (o candelabro de sete braços) como símbolos do Estado. “Viva o Estado de Israel”, disse Netanyahu na altura. “Israel é o Estado-nação do povo judaico.” Dias depois, o Jerusalem Post despediu Avi Kataz, autor de um cartoon que representava Netanyahu e outros membros do Likud com caras de porco a tirar uma selfie e, na legenda, pôs uma citação de George Orwell (“Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”), criticando a nova lei.

Esta é um tema difícil, e sempre ensombrado pelo Holocausto. Mas a crítica política não pode ficar refém disso. Brenner dá-nos uma pista para esta dificuldade, quando diz que “o valor simbólico de a Estrela de David estar na bandeira” e de o hino nacional incluir a expressão “alma judaica” “torna difícil aos não-judeus identificarem-se emocionalmente com o Estado judaico”.


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